«Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.» As palavras de Fernando Pessoa que abrem a segunda parte d’A Mensagem, com o poema “O Infante”, trazem-nos a memória ainda muito viva do dia de ontem. Não sou grande adepto de futebol, nunca fui, mas estas palavras também não irão ser sobre o chamado desporto-rei, mas sim sobre o futuro. Ontem o dia começou e terminou com ouro, com um reconhecimento ímpar da dedicação, do esforço e da fé de cada um dos desportistas que trazem para casa as mais diversas vitórias, levando uma nação inteira a acreditar, a ver a força da esperança. Não sou adepto de futebol, é verdade, pois as diferenças clubísticas levam-nos à separação, ao ridículo do insulto, mas quando um povo está unido à volta dos seus melhores, daqueles que sonham por levar a Alma Portuguesa mais longe, é impossível não estar com eles alinhado.
No entanto, não podemos contornar também a magia de tudo o que foi o jogo de ontem. Capitalizando um dia de vitórias, o que se viu foi a manifestação maior da alma de um povo. Procuramos incessantemente um D. Sebastião, um salvador da nossa pátria, vivemos essa saudade imensa e eterna da perda do rei, que nos leva à busca incessante no exterior de algo que, sem dúvida, apenas dentro de nós podemos encontrar. As últimas horas foram prova disso, mostrando-nos que é apenas em união, com um propósito e um sonho, que podemos chegar mais longe.
Amado por uns, odiado por outros, Cristiano Ronaldo é visto por muitos como uma espécie de D. Sebastião, como a única figura que nos pode levar à vitória. Contudo, ontem, Ronaldo teve um “azar”, tendo de sair ainda na primeira meia hora de jogo, com uma lesão provocada, criando o desespero de muitos. Nesse momento, caído no chão, lágrimas a escorrer, uma borboleta, uma traça, pousa-lhe na face, criando um momento mágico e sublime. O símbolo do renascimento, a borboleta, sob a forma de um ser menor, a traça, mostrando que o pequeno torna-se grande quando se enche de fé e de esperança, quando é guiado por algo superior, manifestado por uma crença inabalável, David em frente a Golias, preparando a sua funda. Acredito que o espírito de Ronaldo, de certa forma, sacrificou-se por todos nós, para fazer com que uma selecção se unisse pelo seu país, pelo seu capitão, pelo sonho do seu treinador, um profundo homem de fé. Ronaldo voltaria ao final da segunda parte, sendo essencial no tempo do prolongamento, motivando a sua equipa e levando umas palavras mágicas a mais um “David”, de nome Éder, diminuído desde o primeiro minuto, tornando-se grande pelo inesperado, por marcar o golo que levaria Portugal inteiro ao rubro.
Outro ponto importante, também mágico, são as palavras escritas há quatro semanas, por Fernando Santos, homem de uma fé extraordinária, verdadeiro líder, não porque criou uma táctica, bem discutível, por sinal, mas sim porque acreditou, porque levou cada um dos seus jogadores a acreditar, que pelos seus actos demonstrou a tantos milhões de portugueses que não há impossíveis. Nesse texto, agradece a Deus Pai, dedica-lhe a sua vitória e agradece também por lhe “conceder o dom da sabedoria, perseverança e humildade para guiar esta equipa e Ele a ter iluminado e guiado.” Fernando Santos demonstrou ser um digno representante da Alma Portuguesa, elevando o valor que considero ser o mais forte daquilo que é a nossa identidade, a Fé. A noite não podia terminar sem mais uma digna demonstração do espírito português, quando, em França, um adepto francês chora pela derrota e uma criança, com uma camisola da selecção portuguesa, aproxima-se, consolando-o, abraçando-o, deixando uma marca, sem dúvida, na vida daquele homem, mais uma leve e subtil imagem de David perante Golias.
No início deste texto disse que ele não seria sobre futebol, mas sim sobre o futuro. No entanto, era importante para mim trazer essas pequenas imagens que me marcaram. O futuro, acredito, constrói-se com a percepção do passado, com a assimilação e integração das suas aprendizagens, projectando-as para a construção de um novo caminho, do futuro. Portugal tem somado vitórias, não só no futebol, mas também em diversas modalidades desportivas, em diversas áreas da cultura, das artes, da descoberta científica. Portugal cresce, como em tempos idos, quando demos outros mundos ao mundo, estando agora num momento único e especial, o momento em que precisamos de elevar a verdadeira Alma Portuguesa e levar a cada canto deste planeta, a cada alma desta humanidade, o valor da humildade, da Fé, da Esperança, do Amor.
Portugal, segundo o mapa criado por Fernando Pessoa, que assumimos como representante da identidade da nação, que se alinha perfeitamente com todos os acontecimentos que marcam este país, é do Signo Peixes com Ascendente Caranguejo, um caminho de cuidado feito pelo sacrifício, não o do sofrimento, mas aquele que representa o Sacro Ofício de ser Português, de nos libertarmos de nós mesmos, de resgatarmos uma identidade que está para lá da fundação, que pertence a este chão que se chama hoje Portugal. A Lua, representante do povo, em Sagitário, mostrando-nos que é preciso, duma vez por todas, acreditar, elevar a Fé que está tão presente neste país, libertá-la da religião castradora e transformá-la em espiritualidade pura, entrega de Alma, contacto directo com a mente Criadora, Deus Pai.
Agora, deste dia para a frente, como em cada dia, é preciso acreditar, não numa selecção, não num grupo, mas em cada um de nós, integrados neste Todo, estejamos onde quer que seja, neste país ou noutro, neste continente ou noutro qualquer, neste planeta ou no espaço sideral, nesta dimensão ou em qualquer outra, levando essa Fé até a um nível inabalável, independentemente de tudo e de todos, de qualquer barreira, parede, obstáculo ou mostrengo. É nessa escalada, que terá os seus momentos altos e os baixos, onde iremos rir e chorar, onde sairemos cabisbaixos de batalhas aparentemente perdidas, mas onde aprenderemos a obter alguma vitória em tudo o que fazemos e vivemos, a experimentar, a criar os tais engenho e arte de que nos falou Camões, a capitalizar essa energia para nos superarmos a nós mesmos, para mostrarmos que a nossa Alma é maior que um espaço físico, que um território.
Voltando a Fernando Pessoa, à sua Mensagem, e terminando este texto, cito estas palavras que esse Mestre português nos deixou como o décimo segundo* poema da segunda parte dessa obra mágica e que, a meu ver, representa tudo o que agora é preciso recordarmo-nos para fazermos cumprir a nossa Alma. Podem parecer palavras tristes e intensas, podem parecer até vaticínios de sofrimento, mas quando as leio, aquilo que sinto, é o momento que vivemos, a necessidade dessa mão do vento que irá elevar a chama que é a Alma Portuguesa.
PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
* XII, doze, é o número do Dependurado, no Tarot, a carta do Sacrifício em prol duma fé maior, da descoberta de nós mesmos por essa entrega