Dias dramáticos, os que temos vivido aqui pelo nosso cantinho à beira-mar plantado. Um pouco por todo o país, acorda-se com um intenso cheiro a queimado no ar e com o céu nublado de cinzas espalhadas pelo ar. Todos os dias, as notícias falam-nos de mais área queimada, de mais sofrimento e dor, de pessoas que perderam tudo nos incêndios que lavram terras sem dó nem piedade.
Sabemos que muitos, a maior parte, sem dúvida, são actos criminosos, de seres consumidos pela maldade, pela loucura, pela ira, pela ganância, movidos por sentimentos negros, pesados e destruidores. Uma pequena parte destes incêndios são reflexo da própria natureza, aquela que o ser humano se tem encarregado de desequilibrar, piorando, através dos seus actos de ganância, de necessidade de riqueza e de poder, as condições fabulosas que o planeta Terra tem para nos oferecer. Entre estes casos, podemos incluir aqueles que derivam da negligência humana, da poluição, da beata de cigarro largada sem noção, do vidro deixado no meio da floresta. Ao fim e ao cabo, não estarei muito longe da realidade ao dizer que, no mínimo, 99% dos incêndios que agora lavram este país derivam, directa ou indirectamente, da mão humana.
Perante todo este cenário dantesco, correntes de solidariedade desmultiplicam-se em paralelo com uma indignação geral, muito justificada, que toca diversos pontos, desde o valor recebido por hora por um bombeiro, passando pela falência de um plano de preparação para estas alturas de maior calor e de condições mais propícias a incêndios, assim como a punição que é aplicada a um incendiário. Vibramos entre a dor, a tristeza e a compaixão, mas também vivemos a raiva, a mágoa e a revolta. No entanto, acredito também que todas as situações, nomeadamente as mais dramáticas e difíceis, têm sempre algo para nos ensinar. Sem dúvida, um acontecimento colectivo e social tem essa componente e pode mostrar muito do que somos e do que precisamos de viver.
O fogo é um elemento fascinante, que impõe respeito e, de certa forma, um certo medo. Contudo, não nos podemos esquecer que foi ele o responsável pelo avanço do ser humano até aos dias de hoje. O fogo é um elemento de purificação, da acção da transmutação, a destruição que permite o renascer, a Fénix que, morrendo envolta em chamas, renasce para uma nova existência, aprimorando o seu ser. Fogo é força, é vontade, é vida, e, tantas vezes, para se viver é preciso libertarmo-nos de tudo o que, verdadeiramente, nos consome.
O mundo que nos rodeia mostra-nos muito do que precisamos de fazer em nós, individual e colectivamente, até porque, sem o primeiro, dificilmente haverá o segundo. Num momento de tanta dor e tanto sofrimento, nós, que não estamos a ser afectados directamente por este flagelo, até porque os que estão só poderão fazê-lo mais tarde, ao mesmo tempo que nos colocamos em causa e, quem assim pretender, encontrar formas de poder auxiliar, precisamos de olhar as nossas vidas, a nossa forma de estar e de ser, as nossas prioridades, os nossos valores e o que pretendemos para nós, e compreender o que precisa de ser transformado, o que precisa de morrer para renascer, o que precisamos de nos libertar para que possamos encontrar o caminho aberto para o que realmente queremos para as nossas vidas. Da mesma forma, precisamos de compreender que essa mudança não pode ser apenas temporária, um impulso de um momento, mas sim uma vivência diária e constante, um trabalho contínuo.
Olhemos a realidade do nosso país e tomemos consciência do que estamos a fazer também connosco. Não nos preocupamos, não olhamos, não intervimos, permitimos que outros tomem o lugar que cada um de nós deveria assumir. A cada calamidade anual, sempre nesta altura, ainda que saibamos que muitos destes incêndios deixam muito a ganhar a muita gente, falamos em repensar isto e aquilo, reorganizar e reorientar, em fazer aquelas mudanças que há tanto tempo se falam. De ano para ano, o que se vê são mais interesses a serem satisfeitos, são menos acções e mais destruição. Quando há um ou outro ano de melhor temperatura, o sistema é perfeito, mas quando as condições se propiciam, como este momento, em que Marte e Saturno, quase em movimento directo, vão ficando cada vez mais próximos, em Sagitário, com o Sol em Leão e Úrano em Carneiro, todos signos de Fogo, o descalabro torna-se catastrófico. No entanto, mais uma vez, olhemos a nossa própria vida e vejamos quantas situações necessitamos de transmutar nas nossas vidas, quantas posturas precisamos de mudar, quantas amarras, voluntariamente, mantemos em forma de medos, de dúvidas, de orgulho, de arrogância, de teimosia, de padrões caducos.
Depois, sem sequer nos apercebermos, o Universo direcciona-nos para a beleza de se ser humano. Espontaneamente, movimentos se geram de apoio, contas solidárias se abrem, recolhem-se bens, roupas e alimentos, cumpre-se este desígnio português de ser-se Peixes com Ascendente Caranguejo, ligamo-nos a todos e tornamo-nos cuidadores, sentimos a dor que nos rodeia e choramos as lágrimas que caem na face de quem está no meio do caos. Nada de mal há nisto, muito pelo contrário, mas é preciso que compreendamos também que enquanto não o fizermos também em nós, nas nossas vidas, enquanto não o fizermos, da mesma forma desinteressada e anónima, em tudo, enquanto persistirmos em ajudar o outro para ganhar um lugar no céu, mas depois olhamos para o vizinho do lado, para o seu carro e para a sua casa, esquecendo-nos que há um caminho feito que, indubitavelmente, não vamos querer fazer, dificilmente conseguiremos transformar as nossas vidas.
Invariavelmente, os incêndios irão terminar, as casas serão reconstruídas, a normalidade reposta, os fundos de emergência serão activados e os seguros accionados. Tudo isso acontecerá e voltaremos todos à nossa vidinha, aos nossos padrões, aos nossos medos, à nossa “normalidade”. Para aqueles que por estes flagelos passam, há uma memória que fica, uma vida que se reconstrói, uma gratidão a todos os que os ajudaram, quer conheçam ou não, histórias para a posteridade, dor, tristeza, pesadelos e noites mal dormidas. No entanto, acredito, que se todas estas situações foram canalizadas com fé e esperança num mundo melhor, com atitudes concretas e diárias, com mudanças efectivas e não apenas fruto da motivação do momento, todos, sem excepção, ganharemos uma nova consciência e tornaremos o nosso mundo um pouco melhor, passando para esta sociedade, para este país, a força e o entusiasmo que há poucas semanas bradávamos aos céus (ou já todos esquecemos?).
Agora, neste momento, é preciso ajudar, seja como for, e o que não falta são meio de auxílio. Podemos transferir dinheiro para as contas solidárias, entregar mantimentos aos bombeiros, bens para a Madeira ou para outro qualquer ponto que está em sofrimento neste país. Esqueçamos por momentos as comparações e façamos a tal transferência de 1 ou 2 euros com a mesma força e o mesmo entusiasmo, com a mesma dedicação, compaixão e amor, que teríamos se fizéssemos uma transferência de 1 ou 2 milhões. Para quem não o possa fazer, de coração e com amor, com muita fé, coloque estes locais nas suas orações, coloque estes bombeiros nas suas palavras e nos seus pensamentos, coloque cada um destes seres que vivem este flagelo nas suas preces. Apenas uma última referência, muito derivada duma crença pessoal, mas que considero importante. Façamos tudo isso, sim, mas depois não vamos para as redes sociais dizer que o correcto era meter estes incendiários lá no meio do fogo. A nenhum de nós cabe julgar seja quem for e muito menos ser carrascos, nomeadamente a alguns “iluminados” detentores de palavras divinas e espirituais para uns casos, mas de faca apontada para outros. Cabe também a cada um de nós que faça tudo para que a justiça se faça nos locais correctos e que, se algo consideramos errado, enquanto cidadãos, possamos mover os nossos direitos para tudo fazer em prol dessa mudança. Mais do que isso é cairmos na armadilha do ego e permitir que todo o trabalho que pode, e deve, ser feito, nesta altura, caia por terra e, sobre nós mesmos, tenha efeito nulo. O propósito destes tempos é o do renascimento, de subirmos mais um pouco na escada da nossa evolução, não o inverso, não a queda para o abismo da nossa própria sombra.