Num destes dias, no metro, a caminho de casa, já passava das dez da noite, senta-se à minha frente uma senhora, provavelmente na ordem dos seus quarenta e muitos anos. A um dado momento, tira do seu saco um pacote de doces, do género gomas, mas compridos e cheios de açúcar ou o que é aquilo. Parte um pedaço e come. Volta a colocar dentro do saco. Poucos segundos, talvez um minuto, depois, o mesmo ritual. Nessa segunda vez, um pouco mais atento, olhei para o saco de pano da senhora. Um saco banal, de pano, com alças e umas palavras gravadas a preto, bem grandes e visíveis, que diziam “Emotional Baggage” (em português, “Bagagem Emocional”). Eu parei o que estava a fazer, sorri e pensei o quão irónica a vida pode ser com os seus sinais. A minha paragem chegou, levantei-me, a senhora executou mais uma vez o seu ritual, eu saí.
Efectivamente, a quantidade de bagagem emocional que carregamos é peculiarmente vasta, imensa por vezes, mas muito bloqueadora, porque temos o péssimo hábito, socialmente alimentado, de passarmos à frente, de deitarmos para trás das costas, de contornarmos sem olharmos e confrontarmos, sem trabalharmos e entendermos a sagrada missão de cada coisa nas nossas vidas, no nosso percurso.
Quando, como bem dizemos, deitamos para trás das costas, esquecemo-nos que essas coisas ficam na nossa “mochila de vida”, a nossa “bagagem”, carregamo-las sem as vermos, pensando que ficaram perdidas no passado e que nunca mais precisaremos de olhar para elas. No entanto, quando um dia o caminho fica íngreme, porque é necessário subirmos ao topo da nossa montanha, sentimos o peso nas nossas costas, nos nossos ombros, e temos de parar para descobrir o que carregamos sem nos lembrarmos, para nos confrontarmos com essas mesmas coisas e trabalhá-las.
Na nossa bagagem emocional as coisas transformam-se, mostram-se de forma diferente. Os medos passam a ser castrações e frustrações, as carências passam a ser drogas, álcool, comida ou relacionamentos tóxicos, as culpas transformam-se em anulação, dúvida e autodestruição. Depois, cada uma destas mesmas coisas tornam-se outras, bem bonitas e saborosas até, como o doce que aquela senhora comia às dez da noite, compensando um dia mau ou frustrante, cansativo ou desgastante, uma vida dura ou difícil.
Contudo, não nos iludamos, todos nós fazemos estas coisas, todos nós temos uma mochila que recolhe aquilo que não trabalhamos, todos nós temos uma bagagem emocional, e ainda bem, pois ela é uma ferramenta extraordinária e imprescindível na nossa caminhada nesta vida. Sem ela, nada aprenderíamos, nada em nós desbloquearíamos, viveríamos numa constante fuga para a frente sem nunca conseguirmos evoluir, pois todo o material que o permitiria fazer estaria perdido algures.
Acredito que a maior aprendizagem que vimos fazer à Terra é a do amor, não o amor incondicional, bonitinho e muito apregoado pelo “xalalá” espiritual, mas sim o amor terreno, condicional e condicionado, sim, mas aquela massa surpreendentemente forte que tudo une e que tudo faz crescer. O amor que serve de bálsamo de cura não é aquele que nos eleva até às dimensões mais etéreas, é sim aquele que vivemos intensamente aqui, que preenche as nossas células e nos renova, que nos activa a kundalini e nos permite iniciarmos na vida, a verdadeira vida, aquela que se faz com os pés ligados à Mãe Terra e a coroa ligada ao Pai, à Fonte, ao Infinito. No meio, cada um de nós, como um canal, vibra em amor, dá amor, recebe amor, reconhecendo o grande valor que o Amor tem nas nossas vidas.
Muitas vezes falamos do poder do amor, mas uma das grandes questões que precisamos de compreender não é o seu poder, mas sim o seu valor. Nos últimos dias, por várias circunstâncias, esta é a grande verdade que me tem chegado, a de que, na verdade, o que é importante é o valor do amor, não o seu poder, a sua influência como fiel de balança nas nossas vidas, como orientador e bússola. Sem amor, nada vive, nada cresce, nada se eleva, sem amor, nada se une nem se manifesta ou materializa, não porque o amor é poderoso, mas sim porque o seu valor é incalculável e nem a totalidade de toda a matéria que consideramos preciosa no Universo pagaria uma molécula de amor.
O valor do amor não é medido em algo que existe na matéria, é, sim, sentido pelos corações que transforma, pelas vidas que modifica, pelas feridas que cura. Quando damos valor ao amor nas nossas vidas, quando compreendemos o que isso significa, quando permitimos que isso se manifeste em nós, realinhamo-nos com o nosso propósito, entendemo-nos, descodificamos as nossas questões e abrimos os nossos caminhos. Não é fácil, nem directo ou simples, sem dúvida alguma, mas é um percurso que necessitamos de fazer, todos os dias, passo a passo.
É por isso tão preciso e precioso trabalhar a nossa bagagem, retirar de lá as velhas pedras e, com amor, poli-las, lapidá-las, pacientemente, dedicadamente. Dessa forma, depois de extrairmos de cada uma delas, de cada situação vivida, a sua essência, ficaremos com o que em nós tiver de existir e se manifestar, e largaremos o restante como sementes que se tornarão flores e que lembrar-nos-ão, quando em alguns momentos olharmos para trás, do percurso que fizemos e de quanto já trilhámos. Contudo, tal só é possível quando olhamos a nossa vida e cada situação com amor, amor por nós mesmos, amor por tudo o que somos, amor por tudo o que podemos ser.