Uma sociedade é construída sobre valores que a estruturam, pedras basilares para o seu desenvolvimento. A nossa, muito pelo cariz religioso sobre a qual foi edificada, tem um conjunto de valores morais e humanos que, na sua essência, são duma profunda beleza e duma saudável harmonia. No entanto, e como as sociedades são formadas por pessoas, no seu desenvolvimento também existem muitas interpretações diferentes e até inúmeras deturpações desses mesmos valores, criando bloqueios e feridas que, de forma global, precisamos de trabalhar.
Crescemos com a ideia enraizada da necessidade e da importância de nos dedicarmos aos outros. Mulheres que se deviam dedicar aos maridos, homens que se deviam dedicar à família, homens e mulheres que tinham de vestir a camisola das suas profissões e viver em profunda dedicação, entre tantas outras ideias e conceitos. Ainda que, hoje, muitas destas ideias estejam largamente ultrapassadas, existem variantes que estão em nós impregnadas e que nos levam a, muitas vezes, esquecermo-nos de nós, a não nos sabermos colocar no nosso devido lugar e a colocar os outros como uma prioridade acima, muitas vezes, do nosso próprio bem-estar.
Vivemos, claro, num contexto social e comunitário, onde todos precisamos (e assim deveria acontecer) de cuidar uns dos outros, de sermos mais atentos aos que nos rodeia, às pessoas que vivem à nossa volta, às suas necessidades. No entanto, é curioso perceber que, ainda que existe o tal foco do cuidar e do nos dedicarmos ao outro, ele nem sempre abarca a comunidade, sendo apenas direccionado duma forma muito egoísta, apenas para aqueles que nos são mais próximos, que a nós, de alguma forma, estão ligados. Só respondemos, tantas vezes, e ainda bem, à sociedade que nos rodeia quando dela e das suas fragilidades somos recordados.
Fomos muito educados a este cuidar do outro, a esta dedicação aos que nos são próximos, a prescindir, tantas vezes, das nossas necessidades em prol deles. Esta é uma postura que não tem nada de mal, que é absolutamente necessária até, mas que, quando não é acompanhada por uma consciência complementar, torna-se apenas um extremo desproporcionado e um profundo desequilíbrio que gera, sem dúvida, uma energia que podemos considerar como uma dívida.
Por muito altruísta, bonito e caridoso que seja auxiliar o próximo, a verdade é que tal não tem qualquer valor nem propósito maior se for feito às custas de nós ficarmos piores.
Para poder cuidar de alguém é preciso, primeiro, ter as condições pessoais para o fazer. Se alguém não souber nadar e saltar para o mar para tentar salvar outra pessoa que se esteja a afogar, o mais provável é morrerem os dois. Se alguém nos pedir uma certa quantia de dinheiro emprestada, mas só tivermos uma parte, se quisermos emprestar a totalidade, teremos também nós de contrair uma dívida, e com isso prejudicarmo-nos. Por isso, é tão essencial, quando queremos estar ao serviço, ajudar e cuidar, termos uma profunda noção de quem somos, do que está ao nosso alcance, dos nossos limites, das nossas capacidades.
Por muito altruísta, bonito e caridoso que seja auxiliar o próximo, a verdade é que tal não tem qualquer valor nem propósito maior se for feito às custas de nós ficarmos piores. Não é essa ideia de ajuda que nos foi tão incutida, uma coisa quase sacrificial, que nos faz, como costumamos dizer, ganhar o céu. Pelo contrário, remete-nos para a necessidade de voltarmos atrás, repetirmos aprendizagens, para sentimentos de traição, de desvalorização, de frustração e ilusão.
Sem cuidarmos de nós, sem termos as devidas condições pessoais, a todos os níveis, não vamos fazer bem a ninguém. No entanto, a sociedade foi construída sobre este conceito de dádiva ao outro, uma nefasta deturpação do mandamento do Mestre que nos ensina a amar o próximo. Crescemos com essa ideia da importância de agradar aos outros, nomeadamente aqueles que, de alguma forma, são-nos “superiores”, com a esperança de cairmos nas suas boas graças, de recebermos o seu reconhecimento, de nos poderem ser dadas algumas beneméritas migalhas de boa vontade. Crescemos, devido aos nossos próprios desafios, com a ideia de que temos de fazer tudo para que os que vêm à nossa frente não passem pelo que nós passámos, não compreendendo que, na verdade, não lhes estamos a fazer bem, apenas estamos a compensar questões do nosso ego. Esquecemo-nos também que não existe um “nós” sem um “eu”.
Cuidar de nós é essencial para podermos dar quem somos aos que nos rodeiam, aos que chegam até nós, aos que, também, têm piores condições do que nós e precisam da nossa ajuda. Se não cuidamos de nós mesmos, saímos do nosso centro, esquecemo-nos de nós, colocamo-nos fora do nosso lugar próprio e, assim, entregamos o nosso poder nas mãos daqueles que, supostamente, estamos a ajudar. Ao fazê-lo, em vez de ajudarmos, na verdade, estamos a prejudicar.
É por isso tão essencial termos consciência dos nossos limites, sabermos colocar as nossas condições, aprendermos a dizer um não quando é necessário. É preciso, acima de tudo, saber responsabilizar o outro pelo cuidado que lhe estamos a dar, e tal não pode, de forma alguma, ser uma factura que é apresentada, uma cobrança feita em algum momento das nossas vidas em comum. A dádiva é uma entrega, é uma escolha, uma opção que tomamos em algum momento das nossas vidas. Quando nos responsabilizamos por nós e pelo que estamos a dar, quando nos colocamos no nosso lugar certo, sabemos que não damos mais do que aquilo que podemos e sabemos, cuidamos do outro, sim, mas com a consciência de que temos a capacidade de o fazer.
O Mestre ensinou-nos a amar o próximo, mas sob a premissa de o fazermos como a nós mesmos. Contudo, esta ideia foi deturpada, como referi acima, tendo-nos sido ensinado que o nosso valor está subjacente a esta dádiva, muito ligada a uma ideia, da qual ainda hoje temos resquícios, de que ganhamos o tal céu através da esmola, que é o mesmo que dizer que encontramos uma certa remissão de pecados, encontramos uma paz de espírito através do auxílio ao outro.
Amar o próximo é, na verdade, termos a consciência do que é esse amor. Não amamos o próximo por lhe darmos tudo o que ele necessita, travando, parando e atrasando o nosso caminho. Pelo contrário, é precisamente por esse verdadeiro amor que lhe estendo a mão, que lhe ofereço auxílio, mas com a noção do meu limite, da minha vontade, do que posso dar e do meu próprio caminho. Um “não” é, muitas vezes, uma maior prova de amor, de amizade, de cuidado, que um incessante “sim” que provém de culpas, de pesos de consciência, de necessidades de compensação do ego. Cuidar de nós é um acto de coragem sobre nós mesmos que não precisa de qualquer medalha, mas que nos faz sentir uma paz de espírito, uma força imensurável, uma certeza de que, quando cuidamos o outro, vamos fazê-lo por bem, vamos estar ao serviço e não ser servis, vamos estar em sintonia com o nosso espírito.