
Em todos os mitos e lendas primordiais, aqueles que nos formaram no nosso entendimento enquanto seres e parte da sociedade e do mundo, há um momento de retorno, marcado pelo herói que volta a casa após a sua jornada ou pela esperança num mundo diferente, numa recompensa da provação do nosso caminho. Todos os trilhos, todos os passos do nosso percurso, têm como grande propósito voltarmos, recomeçarmos, com uma nova consciência, com um novo foco.
Para muitos de nós, este momento é um momento de retorno, de recomeço, de voltar ao ritmo do dia-a-dia, às rotinas e hábitos, depois de um tempo que, no ideal, foi de descanso e recuperação de energia, vontade e determinação. Retornamos com o sentido do recomeço, com a vontade de fazer diferente, de mudar algo, de transformar. No entanto, no mundo em que vivemos, este retorno traz-nos também a consciência dum momento muito especial, desafiador, composto de muitos medos, dúvidas e anseios.
Com tudo o que se passa à nossa volta, com tudo o que chega até nós, diariamente, através das notícias, das pessoas que connosco contactam, é fácil bloquearmos, perdermos a capacidade de acreditar e colocar em pausa os nossos projectos e ideias. A insegurança destes tempos divide-nos e empurra-nos com demasiada intensidade para as coisas do mundo, da matéria e da vida humana na Terra. Ainda que seja necessário termos todas essas coisas em conta, até porque é na Terra que estamos a viver e a cumprir o nosso caminho, que foi aqui, neste plano, que escolhemos fazer esta jornada, neste tempo e com tudo o que ele implica, é preciso termos em atenção que é fácil ficarmos presos a elas, tornarmo-nos delas reféns e escravos.
Se pararmos um pouco para observar, distanciados ao máximo de crenças e conceitos, podemos ver que vivemos um tempo, também ele, de transformação, de transição, de mudança. O mundo que construímos ao longo de séculos já não se ajusta ao nosso crescimento, ao nosso desenvolvimento, e torna-se urgente a mudança de paradigma. No entanto, tal não pode acontecer de um momento para o outro, com um estalar de dedos ou com orações bonitas e fofinhas a pedir intervenção divina. Pelo contrário, este tempo pede, mais que nunca, atitude, postura, foco, intervenção do divino que existe em nós em actuação no mundo em que vivemos, através das mais pequenas coisas.
Mesmo um trilho que está disponível na natureza para poder ser caminhado é diferente para cada um dos que o percorrem, ainda que todos encontrem as mesmas árvores, as mesmas pedras e as mesmas encruzilhadas.
Este é um momento de retorno, de volta ao ritmo de trabalho e das obrigações da vida, e, por isso, é também um momento especial, aquele em que temos a oportunidade de revermos o caminho, de nos redefinirmos e reorganizarmos. É agora o tempo do recomeçar, o momento ideal para agirmos sobre a nossa vida e mudarmos hábitos que já provaram não nos permitir crescer, padrões que nos limitaram, crenças que nos bloquearam.
Como um puzzle de muitas peças, cuja primeira visão, ao virarmos a caixa em cima da mesa, é a de caos, e que depois começamos, com calma e foco, a por cada peça, uma a uma, no seu lugar, a nossa vida vai-nos trazendo os desafios, vai-nos propondo mexermos nos nossos temas, com maior ou menos consciência. Nesses movimentos, internos, profundos e, muitas vezes, avassaladores, soltam-se as peças que precisam da nossa atenção, que precisam que nós, com calma, amor e dedicação, possamos reorientá-las e colocá-las nos sítios certos.
É também nestes momentos que nos é pedido um outro olhar, diferente, multidimensional, sobre a nossa vida e sobre tudo o que nos rodeia. A própria compreensão da mudança é feita deste exercício sublime de conseguirmos sair um pouco de nós, de nos libertarmos das nossas prisões internas, das nossas manhas e vícios, de nos colocarmos em causa. Sem esta postura, a nossa visão é sempre a mesma, condicionada e unidimensional, bloqueada pelos medos que nos povoam, pelas feridas que nos moldaram, muitas delas ainda abertas ou sensíveis, pelas mochilas que carregamos. Quando nos permitimos ter um outro olhar, há um mundo que se abre, que não resolve os problemas, mas que nos permite abrir a consciência e nos orienta.
Os pontos de recomeço pedem-nos esta postura singular, como um silêncio entre as notas duma canção, como um espaço entre as palavras escritas ou um ponto final entre orações. Respirar, parar, silenciar, fechar os olhos por um instante e olhar de novo, levados por esse espaço que nos damos, voltando-nos para dentro de nós e compreendendo o que é realmente importante, o que nos move, o que nos apaixona. Nesta consciência, neste outro olhar que adquirimos, que se acrescenta ao nosso, que nos reconstrói, conseguimos a serenidade para avançar, compreendemos qual o próximo passo, que atitude nos é solicitada, que pequenino clique nos é pedido.
O mundo que nos rodeia, o social, comunitário, e o nosso pessoal, como referi há algum tempo num outro artigo, é composto de muito ruído, de muitas coisas que chegam até nós, de muitas solicitações, que nos absorvem e nos deixam assoberbados. É apenas quando olhamos para todas essas coisas de forma distanciada que percebemos alguns simples, mas poderosos pontos: o que é nosso e o que não faz parte de nós; ao que estamos ligados e precisa de ser limpo, cortado e transformado; o que carregamos em nós e que nos impede de crescer; as feridas que estão abertas e necessitam de ser curadas; as crenças limitadoras e bloqueadoras que estão cravadas em nós e que precisamos de mudar. É um outro olhar que, no fundo, nos permite identificar, organizar, rever e, mais importante que tudo, no momento certo, agir.
Um caminho inicia-se com um passo e constrói-se em cada um dos sucessivos que damos – nenhum caminho está pré-feito ou pré-determinado. Mesmo um trilho que está disponível na natureza para poder ser caminhado é diferente para cada um dos que o percorrem, ainda que todos encontrem as mesmas árvores, as mesmas pedras e as mesmas encruzilhadas. É a nossa mente que molda a realidade e, quando nos permitimos mergulhar dentro de nós, aprender com a nossa vida, com os nossos caminhos, com os ensinamentos que chegam até nós, também adquirimos a capacidade de mudar, não a própria realidade, mas a visão que temos dela, a maneira como sobre ela agimos e como nela nos integramos.
As mudanças que buscamos, os hábitos que pretendemos largar ou alterar, começam quando nos predispomos a buscar uma nova visão e a agir, a dar um pequeno, mas sólido passo, ao qual se seguirá outro e depois mais um. Nessa cadência, partindo de dentro de nós, encaramos e enfrentamos medos, redescobrimos a nossa força e o nosso potencial, libertamo-nos de velhas armaduras e permitirmo-nos viver. É assim que, sem nos apercebermos, conseguimos ver e perceber melhor o mundo e como podemos nele marcar a diferença, tocar corações, reacender fé e esperança e levar outros, conhecidos ou anónimos, a, também eles, recomeçar.