Muitas vezes olhamos à nossa volta e constatamos que temos perdido muito daquilo que nos define enquanto seres humanos. Vemos isso nas guerras que correm pelo mundo, nas desigualdades que chegam todos os dias até nós, na indiferença com que observamos os problemas que estão à nossa volta. Vemo-lo nestas coisas mais fortes e pesadas, mas há algo que se torna muito mais preocupante, pois é, na verdade, a base da resolução de todas estas questões que nos assolam. Perdemos, ao longo do nosso caminho, uma grande parte da nossa capacidade de sonhar, de idealizar um caminho diferente, um mundo e um futuro mais humano, mais luminoso, mais belo.
Sonhar é, talvez, das capacidades mais extraordinárias que temos como condição da nossa existência aqui na Terra. Foi essa aptidão que abriu caminho às grandes descobertas que nos trouxeram até aqui, às grandes modificações sociais, à transformação de coisas que, num momento na nossa história e no nosso percurso, estavam cristalizadas e impediam-nos de avançar e de crescer. Perante isso, e olhando para um infinito que poucos mais conseguiam ver, alguns, visionários, sonharam e alimentaram nos seus corações uma fé e uma esperança que se tornou uma semente e que crescer e deu frutos. Isto é verdade para o colectivo, mas também para cada um de nós nas suas vidas, nos nossos percursos.
Verdade também é que o ser humano busca sempre uma ideia de estabilidade, de segurança e de conforto e isso faz com que, ao encontrar algo que traga essas características, que imprima uma ideia de crescimento, se deixe lá ficar, ajustando-se e adaptando-se. Se no princípio até existiam essa segurança e esse conforto, a verdade é que há sempre um momento em que tal transforma-se em imobilismo, em que preferimos o que já conhecemos, ainda que já não nos permita crescer. Continuamos sentados num sofá velho e roto, que consideramos que ainda está bom e confortável, mas onde já se vêem molas a rasgar o estofo e onde já sentimos a estrutura metálica quando nos sentamos, tudo porque temos medo de não voltar a encontrar um sofá que nos dê aquela sensação que encontrámos na primeira vez que nele nos sentámos.
É uma metáfora, sem dúvida, mas reflecte precisamente o que fazemos nas nossas vidas com as nossas relações ou profissões, com amizades e com os nossos caminhos. A mudança é difícil para todos nós, ainda que, racionalmente, saibamos que ela é a única garantia de certeza que temos neste percurso na Terra, a única coisa que podemos acreditar e confiar que está, seguramente, no nosso percurso. Exemplos disso são o nosso próprio corpo ou a natureza que nos rodeia, que está sempre em mutação, pois é ela que permite a renovação e a permanência da vida.
Sonhar é parte de nós, da nossa essência, da nossa Verdade enquanto seres humanos. Sonhar é recordar a criança em nós que cria no papel com lápis de cor, que anda na rua imaginando que é acompanhada por um dragão que junto a si voa nos céus e protege-a, que acredita em fadas e em portais para outros universos.
Perdemos muita da capacidade de viver a mudança, precisamente porque também perdemos a capacidade de sonhar. Ao longo das últimas décadas, talvez até mesmo séculos, fomos diminuídos na nossa individualidade, fomos levados a acreditar que o fundamento do que somos e do que fazemos é a competição para sermos melhores e a necessidade de sermos normais. Competimos com os outros por um lugar e, quando o conseguimos, tudo nos leva a tornarmo-nos iguais a todos os que vamos encontrar, seja na escola, na universidade ou numa profissão. A educação, as estruturas sociais e familiares levaram-nos na busca duma ideia de normalidade, de casar, ter filhos, uma profissão, uma casa, um carro – “como toda a gente”.
Os focos na competição e numa ideia de normalidade, entre tantos outros, levaram a um esquecimento de que nascemos para sermos únicos, para manifestarmos a nossa individualidade, para trazermos ao mundo em que vivemos aquilo que é a nossa centelha, a nossa essência, materializada em tudo o que criamos e tudo o que somos. Para o fazermos, para o concretizarmos, precisamos dum impulso, duma fagulha que acenda a chama do nosso coração e inflame a nossa Alma, dirigindo-a ao reconhecimento da nossa essência. No fundo, é a isso que chamamos Sonho.
Foi isso que António Gedeão, um visionário, nos recordou nos versos finais do seu poema Pedra Filosofal: “Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida. / Que sempre que o homem sonha / o mundo pula e avança / como bola colorida / entre as mãos de uma criança.” O sonho faz parte de quem somos, é parte da nossa natureza. Vemo-lo facilmente na criança que imagina mundos diferentes, que constrói na sua mente e alimenta através do seu coração cenários maravilhosos e torna essa criação a sua própria brincadeira. Quando nos esquecemos dessa parte de nós, esquecemo-nos do nosso potencial criador, precisamente porque, mesmo sem querer, castrámos a nossa capacidade de sonhar.
A castração da capacidade de sonhar começa quando a criança não imagina, não tem espaço para lançar-se na sua criatividade, quando fica agarrada apenas a telemóveis, à televisão e a toda uma realidade que já está construída, que deixa pouco espaço à imaginação. Contudo, esta castração também começa quando crescemos, quando entramos na adolescência, quando vamos para a faculdade e nos preparamos para entrar no mundo do trabalho e nos dizem que temos de pôr os pés na terra, que uma determinada área não dá dinheiro, que uma outra coisa não é profissão. Óbvio que a criança pode e deve contactar com as novas tecnologias, assim como é claro que precisamos de planear a nossa vida, pensando no nosso caminho e nas nossas responsabilidades, mas a partir do momento em que todas essas coisas nos fecham os caminhos, voltamos à normalidade, à competição e a tudo o que nos impede de trazermos a força do nosso espírito no que fazemos.
Sonhar é parte de nós, da nossa essência, da nossa Verdade enquanto seres humanos. Sonhar é recordar a criança em nós que cria no papel com lápis de cor, que anda na rua imaginando que é acompanhada por um dragão que junto a si voa nos céus e protege-a, que acredita em fadas e em portais para outros universos. É essa criança que, ao ser adulto, tem a mente aberta para transpor as barreiras das possibilidades, que tem a vontade de atingir o que lhe disseram que era impossível, que tem a determinação para ultrapassar o limite do que era conhecido e encontrar novos caminhos e soluções para velhos problemas.
Mudar o mundo em que vivemos, ultrapassar os problemas que hoje encontramos e que dominam o nosso dia-a-dia só será possível quando readquirirmos a capacidade de sonhar, de elevar a nossa mente e o nosso coração a patamares que ainda não foram tocados, de alimentar em nós uma esperança que só com o sonho é possível. O que vivemos hoje foi criado e tem sido alimentado, precisamente, pela perda desta nossa natureza e, por isso, só voltando a vibrar na utopia e na idealização, trazendo-a para o mundo concreto, ajustando-a e tornando-a um caminho e não apenas um destino, é que conseguiremos voltar a ser verdadeiramente humanos. É por isso que, acredito, o sonho é uma estrada aberta para o futuro, que quando percorremos em esperança e amor, torna a vida numa viagem única.