
Antes de algo existir, tudo é um potencial, tudo é uma faísca de luz que se pode tornar em qualquer coisa. Isto é verdade para tudo o que existe, começando pelo próprio Universo. Se, por um lado, a ciência nos fala dum início do mundo provindo, de certa forma, do nada mergulhado em caos, um Big Bang criador, muitas correntes religiosas nos falam também desse Todo que é “nada”, um Deus Criador de todas as coisas a partir do vazio, apenas e somente com o poder do Verbo. Outras falam-nos dum Universo, duma vida, em constante criação, sem início ou fim, apenas existindo e criando-se constantemente. Contudo, se existe uma discussão que a nenhum lado leva é, precisamente, a do início de todas as coisas, até porque, a cada nova descoberta, novos dados, novas compreensões e novos debruçares e ideias, todas as certezas caem por terra e todo um conjunto de saber deixa de ser relevante, lançando-nos de novo no abismo do desconhecimento.
Quando mergulhamos na sabedoria do Tarot, compreendemos que este Todo é também o Nada, e que se revela e se manifesta numa das cartas mais curiosas e enigmáticas: O Louco. O número zero, símbolo do ovo cósmico, contém em si o potencial de todas as coisas da forma mais simples e sublime, a de um despreocupado ser que, aos olhos das estruturas terrenas, parece meio perdido, mas que, na verdade, está tão consciente de tudo o que o rodeia que, sem precisar sequer de qualquer mecanismo de controlo, segue o seu verdadeiro caminho. Na verdade, percorrendo as montanhas do Mental Superior, ou Inconsciente Colectivo, como lhe chamou Jung, ele espera o momento certo de voltar a um novo caminho de crescimento e transformação, até a um novo infinito, um novo Todo que não é mensurável, que, na realidade, talvez seja ainda menos mensurável que o início de todos os tempos.

O Louco é a manifestação do nosso Espírito, centrado com a Origem, que conhece cada partícula dessa responsabilidade superior e nela vive e existe, dando e recebendo, plantando as sementes e colhendo os frutos das caminhadas árduas de encarnação, permitindo-se integrar, em cada momento, com a Fonte. Ainda que tudo isto pareça muito simbólico, na verdade, é apenas uma parte da existência de cada um de nós, pois O Louco representa, precisamente, o potencial que cada um de nós tem em cada coisa das nossas vidas e que, intrinsecamente, traz dentro de si para o propósito terreno. Contudo, se O Louco é cada um de nós antes da Queda, antes da vinda à Terra, então ele representa todo um potencial que se poderá manifestar ao longo das nossas vidas, das nossas situações, quando compreendemos o verdadeiro poder da Vida e o nosso propósito.
Ao longo dos tempos, as sociedades trouxeram a imagem do Louco através de diferentes manifestações. Nos tempos medievais, o Bobo da Corte era uma figura sem qualquer importância ou posição hierárquica que, pela inocência e sentido de liberdade, poderia dizer quase toda a verdade sem que fosse visto como uma ameaça, ao mesmo tempo que cumpria a sua função, a de animar a Corte. Isso não impedia, claro, que por vezes perdesse, literalmente, a cabeça, quando uma certa linha se ultrapassava. Ser Bobo da Corte era uma profissão de risco, muito apreciada pela Corte, mas que requeria astúcia, inteligência e perspicácia, o mesmo que O Louco nos apresenta com a sua energia, a sabedoria que é passar pelos pingos da chuva, que é dançar enquanto o furacão passa, deixando-nos levar por uma força qualquer que, muitas vezes, nem sabemos de onde provém. Mais recentemente, o Joker das nossas cartas de jogar, que, na verdade, nada tem a ver com O Louco do Tarot, ou mesmo o personagem da banda desenhada Batman, trouxe-nos a ideia da imprevisibilidade, do risco, do caos numa ordem instituída, do trunfo na manga. Curiosamente, o primeiro nome dos Arcanos Maiores era, precisamente, Trunfos.
O Louco ensina-nos que a vida é um momento e um instante, que o Tempo é o Mestre que iremos integrar e com ele aprender, é o foco do nosso percurso, o trabalho profundo que nos definirá.
Se o percurso que os Arcanos Maiores do Tarot nos revela é manifestado pela dimensão e ordem numérica que em cada uma das cartas existe, cabe ao Louco, na sua coerente incoerência fazer esse mesmo caminho, levando a cada estágio a sua magnitude, o seu enorme poder. Em cada passo, ele pede-nos que encaremos o desafio com a sua energia, com a sua peculiar sabedoria, aquela que parece tontice e despreocupação, deslocada de tudo o que são as normas e as regras, a dimensão terrena que o planeta nos coloca. Quando o fazemos, abrimos portas, desbloqueamos caminhos, reconhecemos a beleza e a magia da vida em cada momento, não porque o forçamos a ser qualquer coisa, mas sim porque nos apercebemos que, simplesmente, só precisamos de Ser, apenas e unicamente, nós mesmos.
O Louco ensina-nos que a vida é um momento e um instante, que o Tempo é o Mestre que iremos integrar e com ele aprender, é o foco do nosso percurso, o trabalho profundo que nos definirá. Moldar o tempo começa por aprender a senti-lo, a vivê-lo, e tal só pode acontecer quando nos permitimos estar, ser, existir, não no passado ou no futuro, mas sim no momento, no instante, no verdadeiro sentido da vida. Para o espírito o tempo é medido de forma diferente, pois o espírito não depende do tempo, ele sabe que é o tempo, e o tempo é tudo o que o rodeia, é tudo o que ele é e, por isso, é também a sabedoria intrínseca que O Louco contém.
Todas as figuras do Louco, independentemente da corrente que sigamos, trazem-nos um ser que transporta um bordão com um saco. Como um saltimbanco que vai de terra em terra, num caminho, por vezes, aparentemente, errante, ele segue alegremente, despreocupado, deixando-se (talvez) levar pelo percurso. O bordão, símbolo do peregrino, constante em diversas cartas dos Arcanos Maiores, das mais diversas formas, não assume o seu papel normal, como base de apoio, significador de sabedoria. Pelo contrário, ele é carregado de forma despreocupada. Ele sabe que o caminho faz-se caminhando, como dizia o poeta, e, por isso, ele avança, sem medo do desconhecido, até porque o desconhecido é o seu domínio. No Tarot de Rider-Waite, o saco que O Louco leva no seu bordão tem inscrita uma águia, o símbolo da elevação da energia do Escorpião, a espiral superior da energia mais profunda da Terra, que transmutamos quando nos permitimos libertar dos controles, das vivências mais densas e materialistas, quando activamos a nossa Centelha Divina. No saco, O Louco transporta tudo o que necessita, ainda que de forma totalmente livre e despreocupada. De que serve perdermos tempo com pequenas coisas, se tudo o que precisamos, em cada momento, está sempre ao nosso alcance?

Como um saltimbanco, O Louco percorre o caminho em direcção ao desconhecido, levando a sua arte por todo o lado. Quando chega a uma nova terra o seu propósito é ganhar dinheiro para comer e beber, para viver e divertir-se. Para isso, chega ao centro da população e faz um número de malabarismo. Quando o observamos parece-nos não saber muito bem o que faz, nem como o faz, mas a verdade é que a arte do malabarismo, como a arte da vida, é fruto de muita prática e foco, misturada com um estilo livre e despreocupado, algo que exige tempo e afinco, dedicação e entrega, algo que faz, na verdade, deste Louco um enorme Sábio.
A fronteira entre a loucura e a sabedoria sempre foi muito ténue, e a prova disso é que muitos sábios enlouqueceram e muitos daqueles que são considerados tolos, na verdade, têm profundezas de conhecimento e sabedoria em si mesmos. Por isso, também não será surpresa O Louco é a 22ª carta dos Arcanos Maiores, ao mesmo tempo o início e o fim de todo o percurso, não o início e o fim temporal, mas sim o conceptual, ele é a origem e o resultado, o alfa e o ómega. O 22 é um número Mestre, o grande arquitecto, que nos remete para o 4, o número das estruturas. Ele traz para o plano terreno tudo o que foi idealizado, o que existe em potencial. Isso faz do Louco a Mente Criadora Superior que está presente em nós, a representação pura do espírito em todo o seu esplendor, que pode ser utilizado e vivido no espectro mais positivo e criador, como também no seu espectro mais negativo e destruidor.
É esta radicalidade do Louco que o liga ao planeta Úrano na Astrologia, o ponto da voz de Deus em cada um de nós, a criatividade única, o ponto mental da consciência superior. É esta conexão que nos mostra que precisamos de encarar cada momento das nossas vidas com a surpresa que só a inevitabilidade e a confusão nos trazem, percebendo que é apenas do caos pode provir a estrutura e a certeza, que nada começou de algo pré-definido, que tudo o que existe assim o é pela vontade, e a vontade é a compreensão e a integração de um ciclo, na sua perpetuidade. Kahlil Gibran dizia-nos: «A perplexidade é o início do conhecimento.» Então, O Louco pede-nos que nos deslumbremos pela beleza e pela magia da vida na Terra, que a transportemos como ele carrega a flor, com delicadeza, mas sem protecção excessiva, que confiemos, como ele confia no cão que o acompanha, que nos rendamos, pois da rendição vem a sabedoria e a iluminação.