
Os tempos de grandes mudanças e transformações, como o que estamos a viver, trazem consigo fortes e profundos processos, não só do ponto de vista social, mas, acima de tudo, individualmente. Quando olhamos o mundo à nossa volta, mas também quando olhamos o nosso mundo interior, os nossos caminhos e processos, vemos muitas coisas a acontecer, temos muitas sensações, emoções e sentimentos, vivemos anos inteiros em poucos dias, sentimos que a vida está a passar num piscar de olhos e questionamos muito sobre tantas coisas.
Olhar o mundo que nos rodeia é, muitas vezes, profundamente doloroso e avassalador. Vemos guerras, fome e destruição que não nos fazem qualquer sentido, vemos atitudes e acções que nos fazem pensar o que se passará na cabeça das pessoas para o fazer. Todas estas coisas, na verdade, são exteriores a nós, e ainda que mexam connosco, no final do dia, maior parte delas não são nossas e pouco ou nada nos afectam, a não ser nas nossas crenças e valores. Contudo, como tantas vezes refiro, o mundo exterior é um reflexo do nosso mundo interior. Tudo o que vemos à nossa volta começa e desenvolve-se através das escolhas, pensamentos, sentimentos e acções que todos nós fazemos. É por isso que mexem tanto connosco, que despoletam enormes processos em nós.
Todos os dias vivemos inúmeras emoções e sentimentos, lidamos com incontáveis acontecimentos e experiências. Todos os dias encontramos nos outros, naqueles que passam por nós, um pouco do que existe dentro da nossa mente e do nosso coração. Como está tudo tão acelerado e intenso, também em nós há uma miríade de coisas a acontecer, a ser vivido e a ser sentido e isso leva-nos a grandes e importantes questionamentos, ao quebrar de estruturas que, na verdade, já estavam rachadas e prontas a ruir, coisas que já não nos serviam nem sustentavam o nosso crescimento, mas que, por medo ou inconsciência, mantínhamos e segurávamos. É nesta intensidade de coisas com que nos confrontamos, na percepção e vivência de guerras e batalhas dentro de nós, que vivemos também um dos processos mais poderosos e importantes destes tempos que vivemos, a desilusão.
Temos na nossa ideia que viver uma desilusão é um processo de sofrimento e tristeza, que nos deita abaixo, que nos faz desacreditar e perder a fé. Por um lado, sim, esse é um dos trilhos que uma vivência de desilusão nos apresenta e oferece, mas ela é muito mais importante e substancial do que isso. Na realidade, a desilusão não é uma simples vivência, mas sim um processo, um caminho que nos leva dum ponto da nossa vida a uma nova verdade. Sem a desilusão, passamos o tempo agarrados a algo que, um dia, por engano ou necessidade, criámos na nossa mente, que sustentamos e alimentamos regularmente com medo de que tudo caia e se estatele sonoramente no chão.
Viver todos os dias na mais pura das realidades, em cada momento, pode ser verdadeiramente destrutivo e avassalador. Ao longo do nosso percurso, precisamos, nas mais diversas coisas da nossa vida, criar pontos de sustentação. Alguns, os mais fáceis e simples, ficam mais ligados a essa verdade, pois conseguimos ver mais claramente, sendo capazes de os enfrentar na sua crueza, sem filtros. No entanto, há coisas que vamos vivendo que são muito profundas, dolorosas e desafiadoras, e muitas vezes vivemo-las quando menos preparados estamos para as enfrentar, quando somos crianças ou adolescentes, quando temos menos ferramentas para lidar com elas, quando precisamos, invariavelmente, de suportes exteriores a nós. É sobre essas experiências que criamos máscaras, que levantamos defesas, que colocamos armaduras e que, maior parte das vezes, sem sequer o percebermos, criamos ilusões.
A desilusão torna-se, assim, um caminho essencial, ainda que, muitas vezes, doloroso. É através dela que retiramos os véus que impedem o nosso entendimento de muitos padrões na nossa vida. É com ela, também, que nos reencontramos com parcelas do nosso ser que estavam escondidas, adormecidas, assustadas e encerradas dentro de nós. É ela que retira as máscaras e os pedestais, que nos mostra tudo como verdadeiramente é e nos coloca nas mãos um poder que estava esquecido.
Um caminho de despertar, de desenvolvimento pessoal e espiritual, não existe nem se faz sem desilusão, sem deitarmos abaixo verdades, dogmas e estruturas que, durante muito tempo, foram os nossos suportes e bases de crescimento.
Por isso, quando vivemos processos, como muitos dos que nos estão a ser solicitados nestes tempos, das mais diversas formas, onde uma parte do caminho a percorrer é a desilusão, temos de ter a consciência da sua importância e de que, sem ela, não teremos a capacidade de mudar, de transformação e de curar padrões e feridas. É isso também que nos demonstra que a desilusão é um processo de amor profundo, de entrega e, também, de resgate, que quanto mais esvaziamos esse copo que guarda todas as visões que temos sobre uma determinada coisa, retirando a imagem enviesada, às vezes até romantizada sobre algo, há uma serenidade e uma paz que conseguimos encontrar e integrar.
É óbvio que não é um processo simples, muito pelo contrário. A ilusão nunca começa no espírito, mas sempre na mente. O espírito não se ilude, pois a sua forma de compreender todas as coisas é através da ressonância, e não há forma de criar uma coisa como a ilusão em algo tão puro como a vibração. A ilusão começa na mente, em reacção ao nosso corpo emocional, face ao que vivemos, vemos e experienciamos, ao que é do plano da matéria, criando uma barreira contra um sofrimento que uma situação nos inflige. Seja porque não queremos confrontar-nos com uma qualquer realidade, seja porque não temos verdadeiramente a capacidade de ver as coisas como elas são, instintivamente criamos barreiras para nos protegermos da dor e do medo, gerando uma ideia e um conceito que, ao longo da nossa vida, tem de ser alimentado. O problema começa quando surgem coisas na nossa vida, pessoas e situações, que nos levam a algum tipo de tomada de consciência, fazendo com que aquela película fina que é a ilusão se desconstrua, mostrando-nos vislumbres de algo bem diferente, algo que não conhecíamos. É aí que todo o caminho da desilusão se inicia e, a partir desse momento, dificilmente consegue voltar-se atrás.
A desilusão é poderosa e enormemente generosa. Ela coloca-nos perante coisas que, muitas vezes, temos dificuldade em ver e em sentir, que são dolorosas e profundas, mas, ao mesmo tempo, nos oferece o poder de nos resgatarmos dum caminho que compreendíamos sem sentido nem direcção. Ela é como um bisturi que corta e extirpa o que estava podre e a contaminar tudo à sua volta, maior parte das vezes sem qualquer tipo de anestesia ou preparação, mas que nos traz libertação, serenidade e cura. Por isso, ainda que a olhemos com desdém, até que recusemos os seus ensinamentos durante muito tempo, a desilusão é um processo de amor, uma força que nos impele a crescermos, a nos transformarmos e, assim, também a evoluirmos.
Um caminho de despertar, de desenvolvimento pessoal e espiritual, não existe nem se faz sem desilusão, sem deitarmos abaixo verdades, dogmas e estruturas que, durante muito tempo, foram os nossos suportes e bases de crescimento. Nesses passos, retiramos os véus e as capas, as máscaras e as armaduras, vulnerabilizamo-nos e perdemo-nos entre as emoções que antes eram vividas e aquelas que agora nos são mostradas, diluímo-nos entre os sentimentos que antes habitavam o nosso coração e aqueles que agora nos preenchem e nos revelam uma outra imagem e uma outra realidade. Contudo, há aqui um passo importante que nunca nos podemos esquecer nem menosprezar.
Desiludirmo-nos não significa que tenhamos sido, em algum momento, enganados, não significa que houve uma falha no nosso percurso nem que estávamos cegos e perdemos imenso tempo na nossa vida. Acima de tudo, não significa que as pessoas nos quiseram mal, que agiram de má-fé, que fizeram tudo para nos prejudicar. É precisamente o inverso. A desilusão é um enorme caminho de amor e perdão, de vulnerabilidade e de transformação, mas também um percurso de cura das nossas raízes e do nosso coração, de resgate e retorno à nossa essência. É com ela que abrimos a nossa visão a uma nova compreensão da vida e de tudo o que a ela pertence, mas em dádiva e em entrega, que percebemos que tudo o que vivemos fez parte do nosso percurso, mas sem uma ideia romantizada, sem uma tolerância cega, sem uma desculpa sem sentido. A desilusão traz ao de cima raiva, revolta, medo, dúvidas e ansiedade, faz-nos confrontar com um lado muito pesado e sombrio do nosso ser, mas que não permanece, não se instala nem habita em nós.
É assim que compreendemos que a desilusão não é aquele monstro que nos deita abaixo e nos coloca num plano, muitas vezes, depressivo, de tristeza e dor. É assim que compreendemos que a desilusão é um acto de amor e uma escolha pela verdade, sempre e apesar de tudo. Só no seu caminho conseguimos compreender que, até ali, por muito que andássemos e fizéssemos, estávamos sempre num labirinto que não nos permitia avançar, que não nos deixava sair de padrões e loopings. Quando nos desiludimos, há um nevoeiro que se dissipa e que revela uns raios de sol que nos aquecem a cara e nos dão a sensação de certeza, de verdade, de serenidade e confiança. Quando nos desiludimos, por muito grande que seja a dor daquele momento e daqueles instantes, há uma voz que, dentro de nós, nos diz que está tudo bem e que agora somos livres para podermos ser, verdadeiramente, nós mesmos.