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Reencontro

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Existe um dito antigo, do qual nem tenho muito presente a origem, que nos recorda que um barco só vai ao fundo quando a água do mar entra dentro dele e o preenche. Estas palavras, apesar duma profunda simplicidade, transportam-nos para algo que, neste momento do nosso tempo e da nossa vida, é essencial, com o tanto que se passa e que estamos a viver.

Num mundo que, em cada instante, parece insano, cheio de coisas que ultrapassam o lógico e o razoável, com tantas desigualdades e injustiças e muitas vezes a roçar a distopia, nem sempre é fácil manter a calma, a sanidade e a ponderação. Para mais, por muito que nos tentemos abstrair, a realidade vem sempre bater-nos à porta, ela rodeia-nos e, de alguma maneira, chega até nós, nem que seja porque um dos grandes propósitos da aprendizagem terrena passa pela vivência social, o que nos mostra que estamos todos ligados, que somos todos parte duma mesma entidade – a humanidade.

Perante todas estas coisas, vemos também quem tente fugir, desconectando-se ao máximo do mundo, o que até pode funcionar durante algum tempo, mas cujos resultados, a médio ou longo prazo, podem ser nefastos. Quando fugimos ou desligamo-nos das coisas do mundo, desconectamo-nos, também dessa mesma base essencial que nos torna humanos, a vida em sociedade, a pertença à família, aos grupos, à comunidade. Desligarmo-nos de tudo isso é fugirmos de nós mesmos e a consequência leva, muitas vezes, a problemas psicológicos, emocionais e, em última instância, físicos.

Perante tudo isto, o que podemos, afinal, fazer para navegar neste mar que é o mundo em que estamos, mas não nos deixarmos assoberbar perante tudo o que se passa à nossa volta? Como viver sem estarmos sempre numa sobrecarga emocional provinda da frustração, da tristeza e, até, da revolta perante tudo o que vemos? Era bom que houvesse uma resposta simples e directa, uma panaceia ou um comprimido que apagasse todas estas coisas, mas o caminho que nos é proposto é muito diferente e, talvez, muito mais trabalhoso.

O mundo em que crescemos e no qual nos desenvolvemos, do qual nós também fazemos parte e para o qual contribuímos, ensinou-nos o egoísmo, a competição, o individualismo exacerbado e a falta de compaixão.

Um dos grandes erros que, muitas vezes, encontramos nas ideias de espiritualidade ou até mesmo de religião é de que isto tem de ficar separado do que é política e problemas sociais. Numa versão mais moderna dum “a César o que é de César”, tentamos manter tudo equilibrado e pacífico, mas, sem o saber, colocamo-nos numa postura hipócrita e arrogante, como se a espiritualidade fosse superior às “coisas dos Homens”. O que chamamos de espiritualidade é, na verdade, algo profundamente humano, é um caminho que temos disponível para podermos tornar a passagem pelo plano terreno uma jornada de evolução magnífica e poderosa. O que chamamos política é, no fundo, tudo o que se refere à nossa vivência social e, como tal, nós fazemos parte dela, necessitamos dela e contribuímos para ela.

Isto não quer dizer que levemos uma suposta espiritualidade e a religião para as organizações políticas, até porque o resultado disso está à vista e consegue ser ainda mais nefasto e destrutivo. Pelo contrário, tal como a política faz parte essencial de nós enquanto sociedade, orientando o nosso funcionamento, estrutura e, em última instância, sobrevivência, também a espiritualidade nos permeia, sendo, na verdade, um compasso de comportamento, de desenvolvimento, de compreensão do mundo, da sociedade e do outro.

Então, perante tudo o que estamos a viver, perante este mundo, por vezes, insano e incompreensível, é essencial que cada um de nós tenha a consciência do seu próprio lugar e do seu caminho. Não precisamos de intervir activamente na vida social, nas organizações ou nas lides políticas, mas precisamos, e muito, de intervir na nossa própria vida e no nosso caminho.

Acredito, e refiro-o há muito tempo, que uma das grandes razões do momento que vivemos é o facto de nos termos esquecidos de que somos parte duma comunidade, de um grupo, duma sociedade ou, até de forma muito mais simples, duma família. O mundo em que crescemos e no qual nos desenvolvemos, do qual nós também fazemos parte e para o qual contribuímos, ensinou-nos o egoísmo, a competição, o individualismo exacerbado e a falta de compaixão. Estas são as pedras basilares de algumas das sociedades mais poderosas e influentes deste planeta, os alicerces de milhares de milhões de pessoas que foram levadas a acreditar que o outro é um inimigo do seu próprio crescimento, que temos de estar todos uns contra os outros, pois, no final de tudo, só há um lugar, o de vencedor.

O resultado desta filosofia de vida (que de filosofia até tem muito pouco, pois o pensamento crítico subjacente é praticamente nulo) está à vista, com um acréscimo de doenças do foro psicológico e emocional, com um número cada vez maior de problemas físicos, como o cancro, ou neurológicos, como o Alzheimer. Podemos até pensar que não está relacionado, mas a posição mais ignorante, autocentrada e arrogante que podemos ter é, precisamente, essa.

Tudo está relacionado, tudo está conectado – e é essa a grande verdade que necessitamos, urgentemente, de recordar. É esta consciência, que é profundamente espiritual, que nos permite olhar para o mundo que nos rodeia e compreender que é necessário cada um de nós colocar-se no seu lugar certo e cuidar, em primeiro lugar, de si mesmo. Este tempo tão estranho é, na realidade, um enorme convite a olharmos para dentro de nós, a compreendermos e tratarmos das nossas feridas, das dores e mágoas, do que está guardado há tanto tempo que já se tornou hábito. No entanto, é preciso ter presente que olhar para nós não é isolarmo-nos, não é fugirmos, não é entrarmos numa vivência de eremita à espera que tudo mude.

O mundo que vivemos é um reflexo do que se passa em todos nós. Todas as coisas terríveis que vemos a acontecerem são o resultado dum infindável tempo que o ser humano se esqueceu do que é, verdadeiramente, ser humano. Por isso, as feridas sociais se tornaram tão pesadas, tão profundas e tão dolorosas. Por isso, hoje vemos posturas tão desumanas, destrutivas e ignorantes. Contudo, se olharmos bem para nós, vamos ver que elas são uma escala substancialmente maior do que todos os dias fazemos. É por isso que, quando vemos as coisas que à nossa volta acontecem, nos dói e em nós activa emoções muito profundas, por vezes, até, avassaladoras.

Este é o caminho que nos é proposto, o de compreendermos que o que nos choca no mundo, o que mexe connosco, o que nos toca em gatilhos profundos, mostra-nos também pontos que, de alguma maneira, e numa dimensão, óbvio, muito elementar, necessitam de ser dentro de nós trabalhados. Como tudo está interligado, as acções e escolhas geram consequências e responsabilidades. Da mesma forma, as nossas feridas moldam as nossas posturas e a nossa forma de viver a vida, e isso é uma ínfima gota dentro dum oceano que é a sociedade, é verdade, mas se conseguirmos tirar cada gota, uma a uma, sem as repormos, o oceano vai esvaziando.

Quando olhamos para nós temos a capacidade de fazermos um caminho de reencontro com a nossa essência e com a nossa humanidade. É assim que nos responsabilizamos pela nossa parcela de acção no mundo em que vivemos, não permitindo que o nosso “barco” fique cheio do tanto que nos rodeia, compreendendo que é necessário fazermos sobre nós o que sentimos essencial fazer sobre o mundo. Quando cuidamos de nós, quando tratamos as nossas feridas, quando mergulhamos profundamente no que em nós pede atenção, resgatamos uma parcela importante da nossa luz, descobrimos uma das fontes da vida, o Amor, dentro de nós, e isso muda totalmente quem somos, as nossas posturas e a forma como passamos a viver. É assim, também, que, um a um, ajudamos a transformar (e, quem sabe, curar mesmo feridas) a humanidade e o mundo.

Palestra - 2025: Ponto de Partida - Youtube

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